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Um campo de invenção sob risco de réplica

por Luciana Eastwood Romagnolli

Desde 2009, Roberto Alvim vem desenvolvendo um trabalho de formação continuada em Curitiba, durante encontros semanais no Núcleo de Dramaturgia do Sesi PR – Teatro Guaíra, do qual é coordenador de conteúdo e orientador. Algumas das peças produzidas ao longo do projeto foram publicadas pela editora 7 Letras e outras já ganharam montagens – caso de Hyeronimus nas Masmorras, de Luiz Felipe Leprevost, que o próprio Alvim dirigiu na sede de sua companhia Club Noir, em São Paulo. Enquanto isso, em Curitiba os textos escritos nesses quatro anos continuavam praticamente inéditos, sem passar do papel ao palco.

Com a abertura de uma turma de formação de encenadores neste ano, foi possível estruturar a 1ª Mostra de Dramaturgia Sesi/PR – Teatro Guaíra, que se realizou entre novembro e dezembro. Textos saídos do núcleo de dramaturgia desencadearam espetáculos dirigidos pelos integrantes do núcleo de encenação, permitindo uma visão panorâmica da produção dos jovens artistas curitibanos envolvidos nos núcleos e da influência de Alvim sobre suas criações.

Os oito espetáculos apresentados depõem sobre o abalo causado pelo contato com o ideário radical do diretor e dramaturgo do Club Noir. Como um tremor de terra que destrói velhos paradigmas de muitos realizadores que ainda se ocupavam em replicar modos de encenação e sensos comuns sem refletirem atentamente sobre essas escolhas, as ideias lançadas por Alvim– e reunidas no recém-lançado livro Dramáticas do Transumano, pela 7 Letras – incitam o pensamento sobre o teatro e o rompimento com o automatismo. Levando adiante a metáfora do tremor de terra, é como se limpasse o terreno para que os artistas pudessem se lançar à reflexão autônoma, num impulso de invenção artística.

Por outro lado, diante da força sedutora do discurso de Alvim, o risco iminente é o da formação de discípulos, (outra vez) replicadores de um projeto estético muito específico, que o carioca radicado em São Paulo desenvolve no Club Noir. Há de se evitar o fechamento de ideias sobre a encenação, para não anular a potência criativa da abertura de pensamento promovida. Sobre o novo terreno limpo, erguer formas que nem repitam o passado nem se repitam entre si.

Os espetáculos produzidos no núcleo ainda se mostram tímidos, nesse sentido, no que tange à autoria. Embora contenham particularidades e distinções entre si, no conjunto muitas vezes comportam-se como variações em torno de um tema forte – que é a obra de Alvim. Ainda que em diferentes proporções. Ela,escrita e dirigida por Raquel Schaedler, é o que mais se afasta do projeto artístico das dramáticas do transumano, por lidar com personagens retraídos, mas ainda reconhecíveis, e com uma história igualmente enfraquecida, mas ainda delineável: um casal estremecido pela repressão sexual da mulher, que se manifesta em ódio à (liberdade sexual da) cadela. Aqui, está-se no terreno do que Jean-Pierre Sarrazac propôs ser a crise sem fim do drama, tomando a forma do “drama-da-vida”, marcado por uma mudança profunda na extensão e no ritmo interno da arquitetura dramática, o infradramático. Um teatro íntimo, voltado ao cotidiano e que comporta microconflitos relativizados pela subjetivação. A encenação opera uma redução das ações e dos objetos sem se desprender da referência cotidiana. Nisso, também diverge das proposições de Alvim. Contudo, os traços estéticos do mestre se insinuam na pouca mobilidade dos atores em cena e na experiência de um tempo distendido.

No outro extremo, Melhor ir mais cedo pular da janela, escrita a dirigida por Leo Moita, é a montagem que mais reafirma as crenças de Alvim como encenador – notáveis, sobretudo, nas modulações vocais do ator Val Salles, na iluminação dominada pelo breu, na cessação da produção de imagens e na imobilidade rompida apenas por curtos deslocamentos. São muitas as aproximações possíveis com o próprio projeto Peep Clássico Ésquilo, empreendido ao longo deste ano pelo Club Noir. Este concebia o espaço cênico a partir do quadro Quadrado Negro sobre Fundo Branco, com que Malevitch radicalmente rompeu com a representação do objeto e seus modos de percepção. Melhor ir mais cedo… não esvazia completamente a cena até que só reste o preto e o branco, mas também a trata como tela: uma superfície pictórica fixa, ocupada por móveis austeros (a cenografia, a propósito, é de Roberto Alvim), que se manterá intocada pelo corpo do ator ao longo da encenação, à exceção do percurso linear do fundo à frente do palco que ele cumpre pontuando a transição de planos dramatúrgicos.

Moita se atém ao projeto dramatúrgico de Alvim também ao privilegiar a fala como suporte da ação e ao estilhaçá-la em distintas vozes, desencadeando um estado esquizofrênico (de divisão do eu), que Alvim defende como possibilidade de uma alteridade radical, na medida em que se desvencilha das identidades culturais, conhecidas. A fala, portanto, carrega todo o potencial imagético, cinestésico e sensorial da encenação, ativando uma arquitetura linguística polissêmica e desestabilizadora dos sentidos. O efeito é de negação de uma consciência una ou centrada; e de descentramento da razão para fora do campo das relações sociais ou interpessoais.

O propósito de instaurar percepções imprevistas sobre o ser, a vida e a morte está na base do projeto teórico e estético das dramáticas do transumano. Para entender melhor esse panorama, convém ter no horizonte alguns desses fundamentos: o transumano como a invenção de subjetividades e de modos de experienciar o mundo não-hegemônicos, por meio de novas arquiteturas linguísticas; a fala como ativadora desses modos de habitar o mundo; emissores em vez de personagens; a cessação da produção de imagens; a recusa ao sentido unívoco em favor da polissemia e da produção de intensidades; a experienciação de outras formas de vivenciar o tempo e o espaço; a obra como ponto, a recusa à narrativa e à linha; entre outros.

Em grande parte, esse projeto estético é contaminado pelo pensamento das artes visuais de artistas como Malevitch, mas também Mondrian, Pollock e outros tantos cujas influências se dão pela abstração, a recusa à representação e a invenção de sistemas formais fechados. Ao mesmo tempo, ancora-se na filosofia, convencido de que uma estética é uma questão existencial, e uma técnica é uma visão de mundo. Nesse sentido, desenvolve um pensamento que distingue cultura de arte, enquadrando na primeira o entretenimento e o senso comum, de modo que caiba à segunda o lugar da invenção – sobretudo da experiência de ser humano. Como Rancière, propõe a reconfiguração da realidade sensível. Como Agamben, entende a arte como a instauração de outra experiência de tempo. Como Deleuze, defende que o inconsciente é uma usina, não teatro, e estende isso a um projeto artístico que não represente nem desvele, mas invente.

Na cena, essa teoria manifesta sua concretude de modo mais evidente pela composição visual como um quadro, imóvel, mas sob a mutação da luz que cria, sobretudo, a penumbra, encobrindo a produção de imagens, e pela ação que se produz no campo da fala.

O paradoxo se dá à medida que a proposição das dramáticas do transumano promove uma radical abertura no pensamento sobre teatro dentro do campo da arte e fora do automatismo e do senso comum, o que aponta para direções insuspeitadas – palavra cara a Alvim – de criação e de autoria, num elogio à liberdade e à singularidade; ao mesmo tempo em que, ao apontar, com semelhante radicalidade,diretrizes sobre como fazê-lo – e como não fazê-lo –, seja na teoria professada ou pelo magnetismo da própria obra de Alvim, tende a desencadear um fechamento em práticas teatrais que comportam reduzidas variações entre si. Está dada a armadilha da qual aqueles que aderem a tal projeto estético estão desafiados a desviar: como não se tornar, em última instância, outra vez um replicador de um projeto artístico, por mais singular que este seja. Isto é, como não se limitar a ser discípulo, mas encontrar seu espaço de concordância e de crítica para forjar uma obra nem reverenciadora nem devedora, mas particular.

No contexto de Curitiba, não há dúvida de que a presença persuasiva de Alvim significou um impulso renovador e transformador. Colocou uma jovem geração que fazia suas primeiras tentativas nos palcos da cidade em contato com questionamentos sobre o texto e a cena teatral que pouco se insinuavam nos seus trabalhos até então e trouxe-lhes uma ambição inédita, desmedida, de arte e de invenção – o que significou uma importante quebra de paradigmas, um deslocamento do senso comum. Isto posto, que pese, por outro lado, a referida tendência à formatação das obras criadas, reproduzindo estratégias sem uma motivação própria, o que pode amarrar os criadores em outra camisa-de-força.

Entre muitos trabalhos vistos na Mostra de Dramaturgia, nos quais a força propositiva se concentrava no texto dramático, e o cerne da encenação era ativar pela fala as subjetividades contrastantes que habitavam aqueles mundos linguísticos inventados, Parido desponta pela potência da teatralidade. O autor e diretor Don Correa mobilizou recursos de luz, espaço e movimento para constituir sua poética e provocar no espectador sensações distintas de estar no mundo. Os seres míticos que os quatro atores evocam em cena resistem a se tornarem imitações de pessoas reais ou a se individualizarem. São portadores de uma carga trágica, associada à trajetória humana do nascimento até a morte e às experiências fundamentais do amor e da guerra. Tal percurso existencial se apresenta pela figura de Doro – de quem se vislumbra fragmentos de vida desde o parto.

Contudo, Doro funciona não como sujeito unificado, mas uma síntese de todos: a corporificação da condição humana, compartilhada pelos que estão ao seu redor, seja pai, filho, inimigo, amante. Uma totalidade que é reiterada por formações de coro entre os atores. Por um encadeamento particular, que recusa a narrativa e desarticula o diálogo, as falas evocam acontecimentos essenciais de uma vida que se sabe trágica e em constante mutação: a consciência do devir. Essa mirada em direção ao futuro se fixa no olhar sustentado pelo ator Sávio Malheiros, um dos momentos em que a construção corporal adensada do elenco produz um vibrante efeito de presença sobre o espectador.

É na materialidade da cena, afinal, que essa experiência particular de humanidade proposta por Don Correa se realiza e produz sensações, deslocando o público de seu olhar habitual sobre o mundo. Com uma função que se confunde à do figurino, a maquiagem redesenha os corpos dos atores recobrindo-os de lama ou argila. O elemento terra, assim, os religa à origem perdida do humano. Sob o efeito de uma luz amarela, quente, outro estado de consciência é sugerido.

Enquanto isso, no campo do texto teatral, sobressai a escrita da dramaturga Ana Johann, autora das peças Um grito que e Um rosto que espreme. Com morbidez e crueldade, ela revira a ordem estabelecida da instituição familiar minada pela violência, em textos que tomam a forma de monólogos cruzados ou diálogos desconstruídos em encadeamentos inesperados. Define, assim, as bases de um estilo particular, destoante na produção de teatro curitibana e com potencial para mais se desenvolver.

As figuras que povoam seu mundo ficcional, antes de constituírem personagens delimitados, são seres que vão se constituindo pela linguagem, através de falas carregadas de contradições e instabilidades. Um rosto que espreme apresenta o microcosmo de uma família moradora de um condomínio, na qual a natureza caótica e perversa desponta sob a superfície de polidez. Já Um grito que evoca a fantasmagoria em um cemitério, tomado como limbo entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Ao apreender os instantes finais de uma consciência ainda moldada por padrões humanos, mas prestes a se liquefazer entre as carnes putrescentes, a dramaturgia enfrenta o horror ao cadáver – próprio ao homem da crença (aquele que nega a podridão com imagens sublimes) e ao homem da tautologia (o que se satisfaz em não ver além da materialidade), como notou Didi-Huberman. Para isso, recorre a um contraponto infantil, cuja inocência exacerba o contraste com a crueza (ou crueldade) da morte. O singular desta obra é fazer desse um espaço para dar voz ao recém-morto e ao susto de sua condição.

Fonte: Questão de Crítica.

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